
‘’No brinquedo, a criança possui o prazer de descobrir e a satisfação de criar.
Ora,para que isso realmente se realize não há necessidade de brinquedos que sejam por demais sofisticados como aqueles que reproduzem a vida adulta ou,como diz Barthes(1975),brinquedos que tolhem a imaginação da criança, fazendo com que ela não invente o mundo, mas simplesmente o utilize(...)Tudo lhe é fornecido pronto.É um objeto acabado,que opõe uma barreira à criatividade e à imaginação.Seria preferível até que,quase sempre a criança pudesse brincar com um objeto elementar(...)que pudesse transformar à sua vontade(...).’’
Professora Dra. Edda Bomtempo no livro Brinquedos Artesanais & Expressividade Cultural.
Conto da imaginação
Era uma vez um garotinho. Acostumado a vida na cidade grande, e a todos os tipos de tecnologia moderna, se viu em verdadeiros apuros quando seus pais contaram-no que o tinham inscrito para participar de um acampamento infantil de férias.Vamos deixar bem claro uma coisa aqui.Acampamento tradicional de férias.Não são aqueles pseudo acampamentos que as crianças fazem hoje em dia, que tem alojamentos e televisão.Barracas, mato e insetos, queridos.
O menino tentou tornar a idéia mais tolerável, colocando duas mudas de roupa na mala para que assim pudesse, no espaço restante, contrabandear seu Wii para dentro do acampamento.
Para o seu desespero, sua mãe o pegou no pulo, e como se não bastasse desiludiu-o da idéia comentando sabiamente que no mato não havia tomadas, nem televisão e muito menos, deste modo, Nintendo Wii.
Tudo bem. Ele poderia ter levado seu Game Boy, mas esqueceu este detalhe.
Em dois dias de vida ‘’na selva’’ ele já estava se sentindo um ‘’Homem de Neandertal’’.
De verdade, ele não prestava praquela vida.
Eis que lá pelo quarto ou quinto dia (sem tecnologia, ele perdia a noção de tempo, mesmo tendo um relógio de pulso com três fusos diferentes, além de dados como temperatura em Celsius e Farenheit e a distância em milhas até o Meridiano de Greenwich) o garotinho, entediado, fez amizade com duas crianças,dois irmãos,um menino e uma menina,cujos cabelos vermelhos já anunciavam certa’’diabrura’’.
Ele era um garotinho divertido. Tinha amigos na escola. Mas não como as crianças do acampamento. Seus amigos na cidade podiam mandar um fax para sua casa na árvore (que era a única coisa que ele fazia perto da natureza, uma casa na árvore). Todas as brincadeiras as quais ele estava acostumado a fazer, mesmo com os amigos, envolviam objetos complexos, a pilhas e baterias, e cheios de velocidade e efeitos especiais.
Quando seus dois novos amigos o chamaram para brincar no acampamento, então, imaginem a perplexidade da criatura. Descrente de que isso pudesse ser possível, mas sentindo que se continuasse a mercê daquele meio do nada, logo estaria topando por aí com Os Outros, e tendo que desvendar seqüências de números estranhos, ele topou.
A idéia da brincadeira era propor uma aventura sem precedentes. O acampamento era cortado por um riacho cheio de botes,mas que só poderiam ser usados com os monitores.Não era perigoso, já que o riacho era raso e corria manso, mas era uma regra.Do outro lado desse riacho, ficava um acampamento vizinho,desses pseudo acampamentos com televisão,em que, corriam boatos, seria dada naquela noite uma festinha regada a groselha e doces a vontade.Eles teriam que se infiltrar nessa festinha.
Para isso, a menina contatou o monitor mais novo do acampamento, que era um conhecido’’criador de caso’’. Tinha por volta de uns 16 anos e era um pouquinho Peter Pan.Sempre estimulava as aventuras das crianças do acampamento. Aquilo não era exatamente uma irresponsabilidade, porque sempre fora muito cuidadoso em não deixar nada de mau acontecer nestas escapadas, e ficava de olhos bem abertos.
Ela explicou a ele o itinerário da viagem e seus propósitos, com ar de espiã do FBI, deixando claro que ele seria muito bem recompensado em Biscoitos Passatempo se os ajudasse.
O monitor sorriu e disse que aceitava. Tinham que arrumar seus pertences. Mochila nas costas, foram pegando tudo que poderia ser útil na aventura. Uma garrafa Pet, lanterna de bolso, um pedaço de papel onde a menina tinha desenhado o mapa da viagem,tampinhas de garrafa, um rolo de papel toalha usado no lanche.
-Ok- disse a menininha empolgada para o irmão e o novo amigo -como vamos imaginar essa aventura?
-Que tal levarmos esses gravetos, parecem espadas de mosqueteiro!-disse o menino ruivo.
-Gravetos?Mas, eles não são espadas!Nem são de metal!-replicou o menino ‘’virtual’’.
-Você tem que imaginar!-respondeu a menina apoiada pelos acenos afirmativos de cabeça do irmão.
O menininho estava começando a ficar incomodado. Como assim?Ele tinha todas as tecnologias do Mundo e não sabia fazer algo que os gêmeos sabiam. Quando chegasse em casa de volta, ele procuraria esse negócio de imaginar no Google.
-Temos que ter um destemido navegador agora!-disse o monitor do acampamento- teremos que atravessar o riacho em um desses barcos.
-Um navegador?Como o Capitão Jack Sparrow??-perguntou o menino, começando a se situar de novo em toda aquela maluquice.
-Exatamente!-disse o garoto ruivo.-Porque não você?
-Eu??-perguntou o menino perplexo- Sem radar?Sem bussóla, pelo menos?Sem um sonar?
-Pra quê radar,maluco?-disse o monitor animado- você tem as estrelas!
-E balas de mosquete- disse o ruivinho apontando as tampas de refrigerante na palma de sua mão direita.
-É - disse a menina-e uma luneta(ela enfiou o rolo de papel toalha contra o peito dele,fazendo com que ele o segurasse abobalhado)e uma garrafa de rum – ela gargalhou empurrando a garrafa pet nas mãos do amigo.-Ou uma garrafa de uma poção mágica, se você achar mais interessante!E tome minha espada!
Ela estendia o graveto torto e fino para o amigo, convicta.
Ele não teve escolha.Agarrou o graveto e subiu a bordo...
...de uma incrível e bem armada fragata.
Podia guiar-se pela constelação de Orion, conhecia o caminho seguindo as direções pela estrela Sirius.Não tinha a bordo sequer um bússola quebrada.Não precisava dela e nem de qualquer instrumento para guiar a sua aventura.
Virava e revirava o timão, sentindo seu navio subir e descer nas ondas revoltas, prenunciando tempestade. A sua frente,ele via pela luneta um grande mar e a visão longínqua da costa da ilha, montanhosa e cheia de vegetação.
O vento inchava as velas do navio e a tripulação trabalhava para manter o navio navegando, sob os comandos do seu capitão, correndo de estibordo a bonbordo,e pra lá e pra cá no tombadilho.
De repente, a tripulação ouviu o grito de seu capitão,ordenando que fossem recolhidas as velas.Estavam chegando a ilha onde um tesouro glorioso os esperava.
A âncora foi jogada ao mar. O navio parou no ancoradouro com um rangido.
Desembarcaram e saíram correndo encosta acima, dando de cara com o muro do acampamento vizinho.
-E agora??-perguntou o ruivinho.
O menino ‘’tecnologia’’respondeu para o espanto de todos os presentes.Estava gostando daquela brincadeira:
-Que tal uma catapulta?
-Boa idéia, mas não temos uma!Acho melhor- disse o monitor sorrindo displicente-você convencer aquela doce menininha ali na janela do alojamento a deixá-lo subir pelas trancinhas dela...o que você acha?
O menino corou. O amigo ruivo caiu na risada. Para surpresa geral, nosso pequeno principezinho gritou lá pra cima:
-Oh Menina das Trancinhas, deixa- me subir por suas tranças para que eu, e meus escudeiros possamos ter a alegria de tomar uma taça de groselha convosco!
Os amigos ficaram abismados, mas não disseram nada, talvez porque sentissem naquele momento uma certa vergonha alheia.
A menina das tranças também sentiu a vergonha alheia chegar até o alto de sua ‘’torre’’, mas não se resistiu.
Levando em conta que suas traças não tinham nem 30 cm ela jogou vários lençóis amarrados, o que possibilitou a todos entrar no acampamento.
A festa era perfeita.Tomaram groselha da melhor safra e se divertiram muito.Na hora de partir, bem tarde da noite,saíram montados em seus cavalos de vassoura em direção ao rio, para mais uma vez atravessa-lo com bravura de uma tripulação pirata.
O menino viciado em tecnologia voltou a sua casa no fim do mês, no entanto,sem muita vontade.Chegou e causou preocupação na mãe e principalmente no pai, que ao desafia-lo para um a partida de Winning Eleven, ouviu-o replicar que não, obrigada, e perguntar ao ‘’velho’’ se ele não teria algumas tampas de garrafa, ou uns gravetos no jardim, ou se pelo menos, não poderiam jogar futebol com uma bola tridimensional.
Débora Carvalho Magno(06/09/2008)